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Meu lugar de mulher trans*

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Texto de Daniela Andrade.

Eu só consigo falar do meu lugar de mulher trans*, de uma perspectiva em que o mundo está constantemente questionando minha feminilidade, o quanto eu sou mulher, o por quê eu me digo mulher. Falo de um mundo que desconsidera as feminilidades das mulheres trans*, nós que fazemos parte de uma identidade considerada abjeta e marginal para o consenso social.

Eu só consigo ver o mundo de uma perspectiva onde a maioria esmagadora das pessoas estão o tempo todo dizendo que os corpos das pessoas trans* são os corpos errados, o certo mesmo, para que possamos alcançar alguma dose de normalidade é que queiramos nos cirurgiar da cabeça aos pés a fim de nos encaixar dentro do cissexismo que dita normas: homem OBRIGATORIAMENTE é aquele que possui pênis, mulher OBRIGATORIAMENTE é aquela que possui vagina, regra suprema. E a sociedade está o tempo todo agredindo as pessoas trans* com essas informações que talharam como inquebrantáveis. As nossas identidades são reduzidas aos níveis da genitalização que é cobrada cotidianamente:

Foto de Chisti Nielsen no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Foto de Chisti Nielsen no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Mas você por um acaso é operada?

Mas por um acaso você é mulher? Por que para ser mulher tem que ter vagina.

Mas por que você quer usar um banheiro feminino se você não tem vagina?!

Mas por que você quer ser tratado como mulher se você não tem vagina?!

Mas por que quer que te chamem por um nome feminino se você não tem vagina?!

Mas por que você quer entrar no provador feminino se você não tem vagina?!

Mas por que você quer usar vagão exclusivo para mulher se você não tem vagina?!

Mas por que você quer que eu te assuma como namorada para a sociedade se você não tem vagina?!

Acrescente mais perguntas retóricas que visam manter o status quo das identidades inteligíveis. E, inteligível aqui no caso é que mulher necessariamente terá entre outros fatores uma vagina. Todas as pessoas que se declararem mulheres sem uma vagina inata não estão convidadas a participarem da sociedade de forma alguma, são seres que devem ser mantid@s à margem.

A pressão social que esmaga e oprime as mulheres trans* a todo momento faz com que, inclusive, muitas de nós nos submetamos à cirurgia a fim de atender essa regra imperativa e cissexista. Como se isso, a cirurgia, fosse trazer algum conforto mágico perante a sociedade, o que por via de regra não substancia a verdade, mas que é imbuído na cabeça de cada cidadão e cidadã. E, se a imensa maioria não o percebe, é por que já nasceu enquadrado dentro da regra.

Diga-se de passagem a cirurgia é um procedimento moroso, pois há diversas exigências que o governo faz para que uma pessoa trans* tenha a “permissão” e o “privilégio” de se operar no Brasil, conforme reza o Protocolo Transexualizador instituído pelo Conselho Federal de Medicina/Ministério da Saúde.

São no mínimo dois anos de terapia compulsória com laudos emitidos por psicólogo, psiquiatra, endocrinologista e assistente social atestando que sim, você é uma mulher trans* e está preparada para a cirurgia. Pois, veja bem, não são laudos que apenas atestam que você pode se operar, uma vez que nossa identidade é patologizada (está enquadrada tanto no CID – Catálogo Internacional de Doenças e DSM – Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais), precisamos nos submeter a um diagnóstico. Sim, ser transexual é ser doente conforme o consenso científico, e toda doença merece diagnóstico, e se não nos diagnosticarem como transexual, esqueça a autodeclaração de que você é mulher.

Precisamos que uma pessoa cis (não trans*) nos dê o privilégio de atestar in loco que quando dizemos que somos mulheres, é porque realmente o somos. Precisamos da autorização para ser, já que somos psicopatologizadas.

E veja, não basta apenas a vagina. As cobranças por enquadrar-se no que estipulou-se que significa mulher não cessam:

Mas quer ser mulher e tem pelo no rosto? Com barba? Com bigode?

Mas quer ser mulher e tem pomo de Adão?

Mas quer ser mulher e tem testa de homem?

Mas quer ser mulher e tem queixo quadrado?

Mas quer ser mulher e tem enormes mãos?

Mas quer ser mulher calçando número tão grande?

Mas quer ser mulher e não tem cintura?

Mas quer ser mulher com ombros tão largos?

Mas quer ser mulher com esse corpo quadrado?

Mas quer ser mulher e não gosta de cabelo comprido?

Mas quer ser mulher e não é vaidosa?

Mas quer ser mulher (…)

É, pois é, para ser a mulher que a sociedade espera exige-se nervos de aço, muito tempo e/ou dinheiro. Dado que as cirurgias de transgenitalização no Brasil começaram a ser feitas via SUS de forma continua há menos de cinco anos, contando com apenas cinco hospitais em todo o Brasil, onde em média se faz duas cirurgias por mês em cada um. Dado todo o contingente de mulheres trans* no Brasil que objetivam a cirurgia, há muitos casos de pessoas que aguardaram 10, 15 anos para serem operadas: as filas e a demora são incríveis.

Ou é isso, ou disponha entre 30 e 40 mil reais e opere-se no particular: mesmo assim os laudos são requisitos fundamentais para as regras brasileiras, laudos que também custam tempo e dinheiro. Pois é, não tem para onde escapar: aguente todo o sofrimento e peso social cobrando a cirurgia, faça aparecer muito dinheiro ou rechace o cissexismo.

Eu só consigo falar de uma pespectiva em que não somos vistas nem como mulheres e nem como homens. Aliás, somos quase gente segundo a visão de muitos. Não temos direito à uma identidade, a sermos respeitadas de acordo com aquilo que esperamos, que queremos, que precisamos. É desse lugar que eu falo, de alguém a que a sociedade cobra que magicamente apareça uma vagina entre nossas pernas, e mesmo depois disso, continuarão a inventar motivos para nos deslegitimar. Afinal, a vagina é apenas um dos itens, quiçá o mais importante dentro dessa sociedade que as pessoas não são pessoas, mas pênis e vaginas sobre pernas.

—–

Daniela Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou.

Escreve no site: Transexualidade. Em seu blog pessoal: Alegria Falhada. E administra a página do facebook: Transexualismo da Depressão.

+ Textos de Daniela Andrade: A morte e a morte de uma travesti.

Autoras Convidadas

Somos de várias partes do país, com diferentes experiências de vida. A gente continua essa história do Feminismo nas ruas e na rede.

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